Mensagens do blog por Instituto Avisa Lá
Eliana C. Sisla e Walkyria Dias
O comovente filme chinês “Nenhum a menos” (1990), do diretor Zhang Yimou, retrata a vida de uma escola rural na China. O professor deve ausentar-se e o prefeito da cidade não vê alternativa, a não ser contratar uma garota de treze anos, que mal terminara o primário e sabia um pouco mais do que os alunos para os quais deveria ensinar. O professor, antes de partir, preocupado com a evasão dos alunos, é enfático, ao transmitir-lhe a consigna: nenhum aluno a menos no seu retorno. A narrativa dar-se-á em torno da busca tenaz da professorinha por uma criança que parte, para uma cidade próxima, em busca de trabalho e sobrevivência, revelando o cenário de pobreza da China no final do século XX.
O nome do filme tornou-se um jargão entre os profissionais da educação, não apenas quando se trata de evasão escolar, mas também quando eles querem lembrar que há diversos jeitos de aprender, diversas inteligências, ou ainda em qualquer situação em que reafirmamos o direito à educação para todas as crianças, qualquer que seja sua realidade social, econômica e contexto de vida.
Nenhum a menos foi o mote para que, no projeto de formação Caminhos do Cuidar , as gestoras e suas equipes buscassem, por meio de uma pesquisa digital, informações importantes a respeito das crianças e suas famílias durante a quarentena da Covid-19.
Em setembro de 2020, as escolas de Educação Infantil do município de São Paulo encontravam-se sem atividade há seis meses. Como as crianças e as famílias estavam vivendo a situação de confinamento? Quais as necessidades das famílias? Quais eram seus sentimentos em relação ao retorno? Quantas famílias pretendiam enviar as crianças para a escola na abertura?
A equipe do projeto elaborou, de forma participativa, um questionário com essas e outras questões, com o propósito de subsidiar as gestoras das unidades em suas decisões, tanto para o período de isolamento, como na perspectiva da retomada das atividades .
Na sistematização da pesquisa realizada pelas unidades, obtivemos um retorno de 35% das unidades, que, por sua vez, obtiveram um retorno de 2508 famílias, o que corresponde à 53% delas. Compartilhamos a seguir alguns resultados significativos e algumas considerações.
Quais as maiores dificuldades vivenciadas pelas famílias no presente momento?
Para 41% das famílias, a maior dificuldade vivenciada na pandemia foi financeira, seguida pela dificuldade em lidar com os filhos (25%) e as emocionais, sejam próprias ou de algum membro da família (15%).
Consideramos os resultados da pesquisa bastante previsíveis, uma vez que as famílias de baixa renda são as mais atingidas em contextos de crise econômica, agravada neste momento pela crise sanitária. A dificuldade em relação aos cuidados com os filhos também é um resultado esperado; e foi ótimo que as famílias tenham-na assinalado. Os cuidados com os bebês e as crianças pequenas exigem muito investimento afetivo e atenção. Os pequenos são muito curiosos e estão aprendendo sobre tudo, inclusive sobre as regras de convivência. As dificuldades financeiras ou emocionais dificultam essa tarefa, sobretudo em casas pequenas e em situação de confinamento.
Mudanças de comportamento das crianças na pandemia
Dentre todos os resultados, este nos pareceu o mais significativo, uma vez que demonstra sinais de sofrimento, que precisam ser compreendidos pelos adultos. Mais de um quinto das crianças apresentou mudança de comportamento. Dentre as mais citadas, por ordem, estão: “quer ficar o tempo todo na TV”, seguido de “come demais ou de menos”; “faz birra, “é malcriada, não obedece”; “chora à toa ou faz manha” e, ainda, “acorda a noite com pesadelo”.
Interessante notar, nesta questão, que, na resposta “outro” (tipos de comportamento), parecem estar as pistas para compreendermos de que maneira as crianças de baixa renda estão vivendo o confinamento. “Criança entediada, triste, sem espaço para brincar, agitada por não poder sair; adultos sem tempo para outras tarefas, falta de rotina, uso do celular ou tablet para que a criança fique mais tranquila”.
Ao discutirmos esses resultados com alguns gestores, os primeiros apontamentos foram de que as famílias, antes, delegavam os cuidados das crianças às unidades; e agora estavam deparando-se com os desafios da educação dos filhos e viam-se perdidas. Talvez fosse importante recordarmos que a educação das crianças, por sua natureza complexa e imbricada na experiência emocional dos adultos que cuidam, é – ou deveria ser – sempre um ato compartilhado.
É justamente nesse sentido que devemos entender a complementaridade entre família e escola, amplamente citada nos documentos oficiais da Educação Infantil, como a possibilidade de interlocução; ou seja, de reflexão conjunta de pessoas – profissionais e familiares –, comprometidas com o bem-estar e o desenvolvimento das crianças.
Cabe também ressaltar que as crianças, sobretudo as menores, estão em sintonia emocional com aqueles que se ocupam delas. A pandemia, evidentemente, suscitou muitos sentimentos, como, por exemplo, o medo de pegar a doença ou da perda de pessoas próximas, quando não o luto pela perda de alguém.
Algumas pessoas em torno de nós sentiram-se extremante vulneráveis, ansiosas ou angustiadas. Ainda, devemos considerar que, se a família está em situação de insegurança financeira e/ou fragilidade emocional, conforme discutido anteriormente, as crianças não estão imunes, mas vivem intensamente essa realidade, sem, muitas vezes, compreender o que se passa.
Neste sentido, conversar abertamente com elas, procurando mais ouvi-las do que falar, parece-nos essencial. Brincar é outra maneira da criança expressar o que sabe sobre os acontecimentos ao seu entorno e elaborar situações difíceis. Ler ou contar uma história e conversar sobre ela, além de oferecer materiais para a expressividade plástica, também são formas de escutar a criança pequena e ajudá-la a compreender o que ela está vivendo.
Sentimentos dos familiares com relação ao retorno
Ao perguntarmos às famílias como elas sentiam-se com relação ao retorno da criança à escola/creche, as respostas mais significativas foram nesta ordem: “preocupados, com medo e angustiados”. Em seguida, ao serem questionados se pretendiam levar a criança, caso a unidade abrisse essa possibilidade, 50% dos familiares responderam negativamente a esta questão, e apenas 10% afirmaram que levariam a criança assim que a unidade abrisse as portas.
Embora o número de famílias que pretende enviar os filhos à escola logo que ela reabrir seja pequeno, frente ao total, este é um contingente que precisa ser levado em conta pelas equipes, na reabertura das escolas. Lembrando a premissa que pauta a argumentação deste texto – nenhuma criança a menos –, as especificidades das situações devem ser conhecidas e consideradas no momento da tomada de decisões. Muito provavelmente, são famílias que enfrentam problemas que poderiam ser amenizados se seus filhos estivessem na escola.
Novamente, a alternativa “outros”, embora com incidência de apenas 1%, oferece-nos algumas pistas para aprofundarmos a reflexão: as famílias reportaram que as crianças poderiam retornar à escola/creche, caso houvesse um plano para cuidar delas e lidar com os procedimentos sanitários contra a Covid-19. Além disso, os familiares disseram que gostariam de ter conhecimento sobre os protocolos de segurança para poder decidir. Outros mencionaram regras severas com relação ao uso de máscara e distanciamento e, ainda, afirmaram que a criança só retornará se tiver perua escolar ou se alguém puder levá-la. Pudemos constatar que os familiares já compreenderam ser o investimento nos protocolos sanitários a chave para o retorno das crianças às atividades escolares.
Cabe aos profissionais da Educação a responsabilidade de conduzir esse processo no chão da escola. Adaptar os protocolos sanitários aos contextos específicos de suas unidades, construir e compartilhar conhecimentos com a equipe e, também, com os familiares.
Será necessário investir no treinamento das equipes para que elas incorporem novos hábitos de higiene, que, como agora sabemos, podem barrar sensivelmente a transmissão da Covid-19, além de outras doenças transmissíveis, tão comuns no cotidiano dos espaços coletivos da primeira infância, mas que poderiam ser evitadas, reduzindo o sofrimento das crianças e as internações por agravos.
Investir na comunicação com as famílias, informando-as sobre os preparativos da unidade para a retomada, dirimindo dúvidas sobre a Covid-19 e abrindo oportunidades de escuta de seus sentimentos, apreensões e sugestões é um aspecto fundamental no processo de abertura.
Podemos observar que a escuta também valorizava os sentimentos e saberes das famílias. Foi um grande aprendizado para as profissionais, que tiveram a oportunidade de ter uma maior compreensão do que viviam as famílias na quarentena, adentrando remotamente suas casas, conhecendo seus pontos de vista, aproximando essas duas instituições, que precisam compartilhar o cuidado e a educação das crianças.
Interessante notar que o contato mais próximo com as famílias fez com que as escolas vissem suas inúmeras dificuldades, mas também sua resiliência e sua força. Nos territórios de alta vulnerabilidade, viver já é um risco. A precariedade é cotidiana. Por isso mesmo as famílias que vivem nesses contextos têm recursos que nem sempre conhecemos, e que as permitem resistir.
Os familiares não são profissionais da Educação. Cuidam das crianças desde que nasceram e continuarão a educá-las depois de deixarem a escola. Para isso, contam com aquilo que sabem, fazendo referências à maneira como eles mesmos foram educados, ressignificando suas concepções e, também, observando e conversando com outras famílias. É dessa maneira que produzem e reproduzem as culturas familiares.
Vida, cotidiano, patrimônio, histórias e relações familiares são aspectos fundamentais para todos os tempos, além de serem muito significativos nestes tempos de pandemia, onde os sentimentos estão mais acirrados e a precariedade econômica bate à porta da população de baixa renda.
Como podemos seguir nessa linha de empatia, quando retomarmos o cotidiano das atividades nas unidades? Eis mais um desafio que poderá resultar em um salto de qualidade na educação das crianças, para que nenhuma delas seja deixada para trás, qualquer que seja sua condição social; para que haja maior compreensão das forças e fragilidades sociais das famílias; para que os profissionais invistam e apoiem as famílias sem julgamento. Enfim, para que não haja “nenhuma criança a menos”.
As escolas, e não apenas as da Educação Infantil, são polos importantes de disseminação de conhecimento, uma vez que é possível atingir um grande contingente populacional, por meio de informações de qualidade, decisivas para a saúde pública, sobretudo, mas não somente, neste momento crítico do país.
É nesta perspectiva que podemos considerar a situação em que vivemos como uma oportunidade. Oportunidade de amplificar conhecimentos essenciais para a manutenção da saúde, de forma capilarizada. Oportunidade, também, de fortalecer a coesão da equipe, em torno da saúde e do bem-estar das crianças, considerando as especificidades e características de cada família, que valorize seus saberes, reconheça suas forças e apoiem-nas na educação de seus filhos.
A busca pelas famílias – “escuta ativa”
Durante a aplicação do questionário da pesquisa, as gestoras relataram dificuldade para contatar várias famílias, que tinham simplesmente “desaparecido”. O celular informado não respondia, elas não tinham notícias das crianças. A preocupação deu-se em função de que o silêncio dessas famílias poderia significar maior vulnerabilidade social, fragilidade emocional ou precarização face às questões econômicas.
Assim, lançamos a campanha “Nenhuma família a menos”, incentivando as gestoras a mobilizarem suas equipes em busca das crianças.
As gestoras relataram que a busca ativa serviu como oportunidade de escuta e acolhimento dos familiares, alcançando alguns daqueles que estavam silenciosos.
A Atendente Técnica Educacional (ATE) Magda, da EMEI Aviador Edu Chaves , conta-nos que: eles [familiares] colocam crédito no celular, mas dura apenas uns 15 dias; depois disso, não têm nem internet, nem celular. Muitos também não acessaram o Classroom porque não têm crédito e muitos, mesmo que tivessem, deixariam de acessar para não ficar sem celular [internet].
Ela conta-nos, ainda: “Em muitos casos, os familiares haviam informado, na ficha da criança, o número de telefone da vizinha. Quando eu ligava, sabia disso e sabia também que, na maioria das vezes, estavam no trabalho. Pedia, então, para a vizinha o favor de o familiar da criança responder a pesquisa à noite, em sua casa e a maioria concordava. Foram muitos que acessamos dessa forma. Fiquei conhecida no bairro e muitas me adicionaram no Whatsapp. Isso vai estreitando os laços”.
Assim como a Magda, tivemos pesquisadoras incansáveis na busca por informações. Profissionais que, com disponibilidade e abertura, acolheram as famílias e suas dificuldades. E é isso que compõe a escuta – a presença e o respeito ao tempo e à perspectiva do outro. “Chamou minha atenção o fato de muitos deles [familiares] demonstrarem que nós, da escola, somos muito importantes; valorizam os profissionais, pedem conselhos, contam suas vidas, contam os dilemas em que vivem seus filhos”, diz Magda.